Estendido no chão da sala de estar um corpo quase inanimado, inebriado de solidão.
O peito rasgado em sangue, a camisa a flor da pele amarelada. Seus pés em movimentos dançados e entrelaçados com a nostalgia da tarde que se finda no fundo de um copo quase vazio.
As xícaras estão frias e o chá que lá havia esfriou quase que totalmente. Uma luz clara toca a janela fechada e ninguém viu o sol naquelas últimas semanas.
No chão alguns livros abertos. Na vitrola um disco riscado e uma agulha quebrada. No sofá o cobertor cheirando a cigarro e vinho barato.
No mês passado havia duas taças – uma foi quebrada pela última pessoa distinta que por lá passou. A taça que sobrou guardou algumas poucas cinzas dos cigarros fumados e esquecidos desde então.
O despertador parece tocar, mas não há porquê acordar, não há para quem acordar. O quarto cinza guarda sapatos vermelhos de dois pés cinzentos que dançavam no portão. Não guarda lembranças de motivos de alegria. Não guarda nada que não seja o veneno que rasga o tempo escasso de outrora.
Na casa ao lado três pessoas comem pão com queijo, margarina e de lá vem o cheiro de café recém passado e bolo quente. Lá ninguém sabe que o corpo permanece estendido, rasgado, dolorido, com o peito aberto coberto de sangue e frustração.
Aquele corpo não possui família, amigos ou um número de telefone. Não, ele não possui nada e nada o possui. Nunca mais sentiu o peito arder em cores. Nunca mais sentiu a brisa das manhãs de verão. Nunca mais pensou em ter algo para fazer fora dali. Foi esquecido e esqueceu qualquer coisa que não seja sua própria embriaguez calada e acorrentada a mágoa que lhe envelheceu.
Por Ana Rivelles
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